Você já ouviu aquela estória dos 6 graus? Que estamos relacionados com qualquer pessoa do planeta através de seis contatos? Pois, algo interessante aconteceu comigo em Lhasa.
Consegui falar por telefone com um amigo de um amigo de um amigo - no caso, do meu “padrinho” sueco na Mongólia, Jan Wigsten. Fui almoçar com Tashi, um tibetano, e expliquei minhas dificuldades para conseguir sair de Lhasa. Tashi trabalhara com turismo e conhecia bem a novela. No final do almoço, ele quis saber quais seriam os lugares que eu mais desejaria conhecer. Como estou perplexo com os monastérios budistas e como esses lugares representam a singularidade do Tibete, sua “marca registrada”, minha escolha para uma eventual viagem fora de Lhasa recaiu em Gyantse, Shigatse e Samye. Tashi, sem fazer nenhuma promessa, se despediu e disse que falaria comigo no dia seguinte. Será que Omega Megog está aprontado alguma?
Mas voltemos a Drepung. O monge Bempa me disse que as 14:30 h eu deveria estar num jardim perto dali. Desde o teto, ele me mostrou um monte de árvores. Ele não conseguiu me explicar o que aconteceria, apenas compreendi que vários monges se reuniriam no local.
Aproveitei o tempo de sobra para perambular pelas ruelas de Drepung. Havia quatro grandes escolas para monges, cada uma especializada em um tipo de estudo. O Colégio Ngagpa dedicava-se, desde o século 15, ao Tantra. Loseling, o maior de todos, consagrava-se à análise da lógica. Na época de seu apogeu, Loseling possuía 180 propriedades e 20.000 camponeses pagavam tributo em produtos agrícolas para manter o colégio em operação.
O movimento ao redor das moradias aumentou. Vários monges saiam com livros sob os braços. Devia estar na hora da tal da reunião. Caminhei em direção ao jardim indicado. Como o lugar estava cercado por um muro, não consegui ver o que acontecia, mas um ruído curioso vinha do interior. Além de um vozerio confuso, eu ouvia o som de estalos, como pequenos estouros.
Encontrei a porta para o jardim. Ao entrar, me deparei com 100 ou 150 monges; um mar de túnicas avermelhadas. Os estudantes estavam repartidos em duplas. Aquele que estava sentado no chão apenas respondia e o de pé, sempre em movimento, gesticulava muito. Um monge mais idoso reparou que eu estava atônito e veio explicar. “Debatemos aqui conceitos do budismo. É para que possamos compreender melhor a essência dos ensinamentos”, disse em um inglês razoável.
Os monges debatem em pares
Apesar de não entender nenhuma palavra em tibetano, o espetáculo era fascinante. O monge de pé questionava o companheiro e sua linguagem corporal fazia parte do ritual. Ele se afastava para definir a pergunta e dava dois ou três passos em direção a seu parceiro. Com os braços abertos, ele jogava sua mão direita levantada ao ar contra a esquerda estendida para a frente, criando um estalo agudo - aquele som que eu havia ouvido quando fora do recinto. Ele parecia enfatizar e repetir a última frase, sempre em tom interrogativo.
O monge sentado tinha tempo apenas para balbuciar algumas palavras; aquele que estava no papel inquisitivo voltava a atacar, fazendo o mesmo movimento com os braços e os estalos das palmas das mãos abertas. Se a resposta não era aceitável, o monge questionador batia três vezes com o dorso de sua mão direita na palma da mão esquerda e proclama o erro com “tsa, tsa, tsa”.
Os ânimos parecem esquentar e o contato físico acontece muitas vezes, mas o ambiente de amizade sempre prevalece.
A intensidade dos debates crescia. Passei duas horas totalmente fascinado pela cena, tentando captar os movimentos e as expressões de perguntas e respostas. Quando o ânimo de algumas duplas tornava-se acalorado, outros monges vinham escutar e até mesmo participar do debate. Perguntei que tema estava em discussão. Invariavelmente, a resposta era “filosofia budista, assuntos muito complexos”. Consegui saber apenas pistas sobre alguns assuntos: compaixão, reencarnação ou causas do sofrimento.
Essa tradição milenar de debates entre estudantes é extremamente criativa. É uma poderosa ferramenta para que o discípulo passe a entender melhor os ensinamentos aprendidos. A dialética é um aspecto vital no estudo do budismo e os debates obrigam a que mente fique esperta e alerta. Com a força de seus próprios argumentos, ele deve convencer seu parceiro, apresentando um tema baixo diversos ângulos.
Saquei que a mente de um monge tibetano deve ser tão afiada como uma navalha para poder cortar as amarras da ignorância. Ser monge não é tão fácil assim, não…
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