Quando regressei do monastério Sera, encontrei outro recado de Tashi. Precisava me ver urgente. Minha primeira reação foi de susto. Será que tinha dado algum creque com a viagem a Gyantse?
Às oito da noite nos encontramos num barzinho. Embora, dentro de mim, eu estivesse um pouquinho apreensivo com essa reunião precipitada, estava confiante que os planos de viagem só seriam modificados para melhor. Tashi me recebeu com um sorriso tibetano. Ele estava sentado com um estrangeiro e fui apresentado ao australiano. Conclui que ele viajaria comigo. Mas essa opção se dissipou quando o australiano disse que seu plano era visitar o Campo Base do Evereste (EBC).
O papo imediatamente recaiu no grupo de ativistas que, há quatro meses, retirou a bandeira chinesa no EBC para colocar a tibetana em seu lugar. Em seguida abriram uma faixa com os dizeres das Olimpíadas 2008 “One World, One Dream” (Um Mundo, Um Sonho) adicionados de “Free Tibet“. As autoridades chinesas ficaram enfurecidas com os jovens do movimento “Students For A Free Tibet” (Estudantes para um Tibete Livre) e retaliaram, punindo todos que estavam envolvidos com eles. Ironicamente, o motorista que os levou de Lhasa a EBC só não foi preso porque era chinês.
Embora minha dúvida sobre o tema da reunião ainda existisse, deixei a conversa rolar. De súbito, Tashi perguntou se eu ainda estava interessado em visitar o Potala. Respondi o óbvio. “Tenho três passes para amanhã cedo às 8 h e um dos australianos, que já visitou o palácio no ano passado, não quer ir. O único problema é que você será australiano por uma hora”, disse ele rindo. “Mas isso não muda nada seu plano de viagem a Gyantse. Vocês terão que sair do Potala às 9 da manhã de qualquer forma”.
Na manhã seguinte chegamos antes das oito no portão de entrada. O guia Mingma (nome fictício) explicou que poderíamos ter um problema na entrada. Dito e feito. Quando o oficial chinês comparou o nome (do australiano) na lista e o do meu passaporte, ele fez cara feia e disse que eu não poderia entrar. Mingma imediatamente entrou em ação e explicou alguma coisa em voz suave. Cinco minutos depois - ufa - eu estava dentro.
Luz da manhã no palácio (abaixo)
O grupo das oito da manhã começou a subir as escadarias. Propositadamente ou não, a visita desenhada pelas autoridades chinesas começa pelo lado leste e termina no lado oeste. Ou seja, no sentido oposto ao horário - e contrário à tradição do “kora” tibetano. Será que o governo fez isso só para incomodar os peregrinos tibetanos? Mingma acha que sim. “Os chineses são muito sutis”. Enquanto subíamos, ele me explicou, em voz bem baixa, que havia passado um mês na prisão. Porque? Haviam encontrado dentro de um guia de turismo uma pequena foto dele junto com o 14º Dalai Lama. Ele esteve numa reunião com o líder político e espiritual tibetano na Índia, onde este vive em exílio. As autoridades consideraram que Mingma fazia parte de um grupo de resistência tibetana.
O Potala é um dos raros locais turísticos onde é expressamente proibido fotografar. Somente é permitido tirar fotos nas longas escadarias, durante a subida e a descida. Lá dentro, vários oficias fardados ou não, estavam de olho nos estrangeiros, chineses e até peregrinos para que todos seguissem a regra.
O Potala e a escadaria de descida, na face oeste (abaixo)
Apesar de não ter a energia mística do Jokhang, alguns templos e aposentos no interior do Potala são magníficos. As estupas que encobrem os restos mortais de vários Dalai Lamas impressionam qualquer um. Mas Mingma explicou que, infelizmente, eu não poderia ficar parado, simplesmente observando detalhes de cada estátua. Tínhamos que manter o passo. Ao entrar, ele recebera um formulário com a hora de nossa entrada, 8:06. “Precisamos sair do Potala às 9:06 em ponto”, avisou. “E o que acontece se nossa visita se prolongar por 15 minutinhos adicionais? perguntei. Ele rebateu: “simples, da próxima vez que eu entrar, cinco turistas meus serão barrados; os chineses também são mestres em retaliação”.
Respirei fundo, tentando buscar o lado positivo disso tudo. Sabia que quase todos estrangeiros saiam dessa visita bem frustrados. Um lugar tão importante para a espiritualidade de um povo - para não dizer do planeta - havia sido transformado em apenas um museu. Belo, esplêndido, singular. Mas um museu. Pior, um museu com hora marcada para entrar e sair. A energia mística do Potala havia se evaporado.
Desci as escadarias como se Omega Megog tivesse conseguido meu passe para o Potala apenas para que eu pudesse compreender ainda melhor a repressão que atinge a cultura tibetana. Deu até vontade gritar “Tibete Livre”!
As bandeiras de preces, colocadas pelos peregrinos nas escadarias, são uma das poucas mostras de religiosidade no Potala