Com as dificuldades de transporte que eu encontrara, Lhasa começara a ter, para mim, um gostinho de prisão. Estava no Tibete, mas sem poder sair da cidade. Por isso, eu não podia acreditar quando, de carro, eu estava a mais de 30 km da capital.
A estrada é excelente. Mingma disse que o asfalto era novo, tinha apenas dois anos. Por isso, todos os carros e ônibus trafegavam em alta velocidade. Em julho, uma van com mais de 20 passageiros perdeu a direção e caiu na ribanceira do rio Brahmaputra. Todos morreram.
Pelo pouco que eu havia notado, os chineses (e os tibetanos) são péssimos motoristas. Seus pés e mãos reagem bruscamente, as freadas e curvas são precipitadas e sem delicadeza. Para a maioria, dirigir um carro é algo muito novo - tiraram carteira nessa década.
A polícia chinesa, preocupada pela segurança (e com sua tradicional paranóia do controle) instituíra um sistema para obrigar o motorista a não ultrapassar a velocidade de 40 km/h.
Chegamos na primeira parada policial. Perguntei se Mingma precisaria daquela minha famosa permissão para sair de Lhasa. Ele disse que não e desceu apenas com seus documentos e os do carro. Regressou dez minutos depois com um papel branco, cheio de carimbos, e explicou que teríamos que viajar os próximos 25 km em 40 minutos. Essa tinha sido a maneira encontrada para controlar a velocidade dos veículos. Se ele chegasse um minuto antes da hora marcada no papel, ele seria multado.
Camponesa com cogumelos silvestres na beira da estrada (abaixo)
Logo estávamos rodando numa velocidade bem acima da média sugerida. Mingma notou que eu havia dado uma olhada no painel do carro e riu. “Não se preocupe, vamos dar uma parada daqui a pouco e aí compensamos”. Na verdade, todos os motoristas faziam o mesmo. Viajavam a 80 ou 90 km/h e depois paravam para uma pausa.
Vendedora de incenso
Depois de uma ponte, estacionamos no acostamento. Do outro lado, uma mulher vendia incenso. Como possuía o cheiro familiar do zimbro de Jokhang, comprei um pacotinho. A vendedora sugeriu que eu descera o barranco, até o rio. Ouvi uns ruídos estranhos, umas batidas roucas. Ao baixar, descobri vários pequenos moinhos, movidos pela água do rio, que “automaticamente” transformavam os galhos da conífera em uma pasta vermelha. Os moinhos, cada um em seu compasso, criavam assim a matéria prima para a fabricação do incenso. Fiquei impressionado com a simplicidade do processo, mas também com a astúcia de como os tibetanos haviam utilizado os recursos naturais.
Moinho para preparar a pasta de zimbro
A estrada seguiu o grandioso rio Brahmaputra até perto de Shigatse, a 270 km de Lhasa. Nesse trecho, o vale ficou mais amplo e as plantações de trigo e cevada tomaram espaço. Como no verão o sol se põe tarde, decidimos ir direto à Gyantse, cobrindo mais 90 km. Mingma me disse que a cevada dessa região é a melhor do país. O “tsampa”, a farinha de cevada tostada, utilizado nos rituais budistas, é essencial na alimentação tibetana.
Mingma notara meu entusiasmo com o moinho dos incensos e resolveu parar em outra fábrica artesanal. Entrei no pequeno galpão e os camponeses pareciam bonecos brancos. Quatro imensos moinhos de pedra trituravam grãos de cevada tostada e o fino pó branco cobria tudo e todos. Consegui tirar algumas fotos antes da minha pobre Nikon ser totalmente coberta pela “tsampa”. A última coisa que eu queria era que essa poeirinha branca penetrasse nas entranhas das lentes ou do sensor da câmera.
Moinho de pedra para produzir a tsampa
Quando me vi no espelho do carro, eu parecia um Papai Noel. Só consegui me livrar do pó branco que me envolvia em Gyantse. Mesmo sendo sagrada, a tsampa se foi depois de um bom chuveiro quente.