Preces para os direitos humanos no Tibete

Katmandu - Ainda no centro comunitário tibetano em Boudha, digo a Tsering que gostaria de conversar com algum jovem. Quero saber o que pensa a segunda geração de tibetanos, aqueles nascidos já no exílio. Um dos membros do comitê me apresenta Ngulchu Tulku. Como ele está com pressa, decido acompanhá-lo com dois jornalistas free-lancers (um italiano e outro holandês). Tomamos um táxi, nos metemos num emaranhado de ruelas e chegamos num bar, onde seus amigos o esperam.

Aproveito a pausa para conversar alguns minutos com Ngulchu. Pergunto a razão de seu nome Tulku. Sei que este é usado apenas para nomear as encarnações de grandes mestres. O jovem de 29 anos, vestindo roupas ocidentais, desliga o celular, pede uma coca-cola e explica. “Sim, sou a encarnação de Ngulchu Lobsang Choepel, o tutor do 10º Panchen Lama.” Seu pai morava no monastério de Tashilhunpo, em Shigatse. Fugiu do Tibete na leva de 1959 e passou a ser o guarda-costas do Dalai Lama. “Fui reconhecido pelo Dalai Lama - mas a história do tutor Lobsang Choepel é triste. ” Ngulchu conta que, em 1962, o 10º Panchen Lama apresentou a Mao Tse Tung sua famosa “Petição dos 70.000 Caracteres”. O ditador chinês teria ficado furioso com a crítica ao Partido Comunista: a longa carta mencionava as execuções de tibetanos logo após a revolta de 1959. “Para evitar que matassem o Panchen Lama, seu tutor responsabilizou-se como autor da Petição”, afirma Ngulchu. “E o tutor - minha encarnação anterior - foi assassinado.”

Seu celular toca novamente. Interrompemos a conversa. Não existe um chefe para a operação relâmpago de hoje. Toda a coordenação é realizada e decidida via celular. “Está na hora, o ônibus vai chegar. Continuamos a conversa mais tarde”, diz Ngulchu. Dezenas de monges, todos com cabeças raspadas, emergem de vários lugares. Um olhar com mais cuidado revela que… são mulheres. Um pequeno ônibus, com lotação para 25 passageiros, chega com membros do grupo. Sobem mais de 50 pessoas. Mesmo espremido, ganho um assento especial, próximo à janela. Entendo que faz parte da estratégia colocar um estrangeiro à vista, para não despertar muito a atenção da polícia. De qualquer forma, para não arriscar, o veículo não usa as avenidas principais, pois seus passageiros poderiam ser rapidamente reconhecidos. Entramos ainda mais no ziguezague de ruelas. Uma ponte em ruínas e o receio do motorista fazem com que desçamos do coletivo. Caminhamos 500 metros na poeira. O grupo encontra uma sombra e descansa, enquanto espera dois outros veículos. Agora são mais de 80 jovens. Ninguém sabe onde vamos. “Podemos ter algum informante entre nós. Por isso, o lugar da manifestação é decidido na última hora”, afirma Ngulchu.

Entre os dois transportes, uma pausa para recuperar energia.

Os ônibus surgem. Dessa vez sento-me ao lado de Dicky Dolma, uma jovem estudante de cabelos negros sedosos e sorriso meigo. Ela tem 18 anos e é filha de um vendedor de tapetes em Patan. Seu inglês é bom e conversamos. “Muitos tibetanos estão morrendo no Tibete. Por isso, devo fazer minha parte. Já fui presa cinco vezes.” Não sei se fico impressionado com sua beleza ou com sua determinação e coragem. Dentro do ônibus fotografo faixas e cartazes que serão usados na rua.

Desde o último 10 de março (data fatídica para os tibetanos, no ano de 1959), essas manifestações tem acontecido com certa freqüência em Katmandu. Os tibetanos daqui consideram que a única forma de chamar atenção da população e das autoridades é ir à sede das Nações Unidas, à Embaixada da China ou algum outro lugar chave. Hoje - acabo de saber - eles vão ao Consulado da China. Os veículos despejam os manifestantes que, sem perder tempo, correm por uma ruela em direção à entrada do prédio. Um guarda de trânsito deixa o grupo passar. Aparece um policial com um cacetete na mão. Mas ele prefere não agir sozinho. Aos gritos de “Free Tibet“, os jovens chegam ao portão de entrada, onde são recebidos por uma tropa de choque. Os policiais não deixam que os tibetanos se aproximem do portão de metal e agora usam seus longos bastões de madeira.

Um segundo pelotão de policias vem em reforço. Chegam em um caminhão. Um terceiro pelotão é composto por policiais femininas, uma vez que um grande número de monjas está presente. Os ânimos se exaltam. Os tibetanos continuam a clamar pela liberdade de sua pátria natal. Os policiais impedem a passagem e utilizam os bastões para reprimir. Uma sirene avisa que os camburões chegaram. Começam as prisões. O primeiro a ser detido é Ngulchu Tulku. Ele parece ser conhecido pela polícia de Katmandu: Ngulchu já foi preso dez vezes nos últimos tempos.

Ngulchu Tulku, a encarnação do tutor do 10º Panchen Lama, é um dos alvos dos policias.

Os policias usam força para prender os manifestantes.

Os policiais escolhem, inicialmente, os manifestantes que não usam as vestes vermelhas dos monges. Os gritos aumentam de intensidade. As monjas se jogam no chão, agarram as pernas dos detidos e não deixam que seus companheiros sejam levados. Os policiais tentam desfazer a corrente humana e puxam suas vítimas cada vez mais com força. Conseguem dividir o grupo e encurralar uma dúzia deles, entre um caminhão da polícia e a alta parede do consulado. Os jovens não agridem os policiais. Impressionados com a presença de repórteres e de suas câmeras, os policiais - em maior número - evitam usar uma violência descontrolada, mas alguns se agitam e passam do limite. Sinto que, com meus cabelos brancos e cara de ocidental, estou a salvo. No máximo, levo um ou dois empurrões por um soldado mais afoito. Mas um fotógrafo indiano, que havia raspado a cabeça, foi confundido com um monge e levou uma joelhada, por trás, em seus culhões.

Dicky Dolma, que até então estava protegida no meio do grupo, é finalmente agarrada por policiais. Ela se joga no chão, aos prantos, e seus companheiros enlaçam-se nas suas pernas. Mas a força bruta vence e ela também é detida.

Dolma, a jovem estudante de 18 anos, com quem eu havia conversado no ônibus, também é detida.

Um monge, com uma bandana apoiando o Dalai Lama, é levado para a prisão.

Em vinte minutos, quatro camburões são recheados de tibetanos. Não sobrou um manto vermelho na rua. Usando a jaqueta azul clara da Nações Unidas, dois observadores da UNCHR (a agência de apoio aos refugiados) tomam nota dos acontecimentos. Um deles vai ao comando policial para checar o estado dos manifestantes e dar tratamento médico aos necessitados. É indispensável fazer uma contagem de todos, pois o governo nepalês, sob pressão da China, tem ameaçado deportar alguns manifestantes - o que é considerado, no caso de refugiados, como crime contra os direitos humanos.

Os monges saem nos camburões, mas continuam pedindo paz para o Tibete.

Com tudo isso, não consegui completar minha conversa com Ngulchu Tulku. Espero que, como aconteceu nas dez vezes anteriores, ele seja solto hoje à noite ou amanhã. Obstinado por seu ideal, ele certamente participará de alguma outra manifestação contra a política chinesa no Tibete ainda essa semana. Mesmo se Ngulchu poderia ser confundido com qualquer asiático prestes a entrar no mundo do consumismo ocidental, algo dentro dele é bem diferente. Afinal, na vida passada, ele foi o professor da segunda autoridade espiritual do Tibete.

 
FREE TIBET WORLD © 1990|2016 Todos os direitos reservados CAS.