Entrevista a Richard Gere




A estrela zen



Aos 63 anos, o ‘american gigolo’, o ‘oficial e cavalheiro’, o trompetista do ‘Cotton Club’, o apaixonado pela ‘pretty woman’ nunca deixou de ser crente na causa tibetana e nos ensinamentos de Dalai Lama. Mesmo quando o vemos num papel de dominador tecnocrata da alta finança em Arbitrage – A Fraude, estreia dia 11, que vê a sua vida demasiado enrolada. E, de repente, o equilíbrio da sua vida familiar (fica muito bem como marido de Susan Sarandon) parece desmoronar-se na mesa medida que o buraco financeiro em que se colocou. Por isso, quando afirma com convicção na nossa entrevista que “o dinheiro não trás felicidade” ou quando repudia, terminantemente, qualquer atitude de violência, percebemos que se trata mesmo de uma estrela com uma qualidade “zen”. Muito menos quando damos como exemplo as manifs de Lisboa. E não lhe falem num qualquer estatuto de “sex symbol” ou dos ditames de Hollywood. Richard Gere é um genuíno. Adepto da causa de Obama, apesar das reservas, acérrimo defensor do seu núcleo familiar, fervoroso crente nos ensinamentos dos seus “professores” tibetanos. Nunca ganhou um Óscar nem nunca foi nomeado, apesar dos Globos de Ouro e até dos “Razzies”, atribuídos às “piores representações”. Mas não ficaria nada mal essa distinção ao homem do cabelo prateado. Química no ecrã é coisa que não lhe falta.






Ao ver “Arbitrage – A Fraude”, ficamos com a certeza que o Richard tem demasiado charme para ser um vilão, não concorda?





Não sei se percebo bem o que quer dizer, mas na verdade eu não acredito em vilões. Acho que as coisas não são preto ou branco. O meu trabalho, enquanto ator, é criar um ser humano. E todos os seres humanos são complexos. Nunca conheci nenhum que não o fosse. Ainda que possa parecer simples. É claro que esta minha personagem é um homem Alfa, aquele tipo de pessoa carismática, com uma grande presença. Mas eu não o vejo como um vilão. Se o visse como um vilão não saberia como o interpretar. Isso acaba por ser um bloco. 





Acha que o mundo da alta finança integra também esse lado de sedução?





Eu não acho o mundo da finança nada sedutor... Estas personagens, as de ficção e as reais, têm uma coisa em comum, é que são terrivelmente confiantes. O lado mais paradoxal desta crise que começou nos Estados Unidos é que os principais responsáveis não foram detidos, foram promovidos. Tornaram-se parte do nosso governo. É claro que isso provoca um sentimento de revolta. É quase como sermos violados por esta sede de cobiça. 





Como definiria então este homem?





Robert Miller é uma pessoa muito poderosa, com uma energia quase infantil que consegue sair-se bem mesmo nas situações mais complicadas. Onde quer que esteja, ele é “a pessoa”. Poucas pessoas têm essa dose de confiança. É algo que não é concebível. Para mim, isso é mais importante que o dinheiro ou poder que possuam.





Mas um ator não acaba também por ter também esse nível de confiança? Não sente isso no seu caso?





O ator acha que consegue preencher os requisitos do seu trabalho, mas a confiança é algo que, por si só, não aguenta a sustentabilidade da história. 





Quando fala do lado humano das pessoas, acha que é algo que também está presente, por exemplo, em Wall Street?





Claro. Eu nunca encontrei ninguém que não encontrasse um lado humano. Eu não vejo muitos monstros. Mesmo se procurarmos no III Reich, aquelas pessoas iam para casa e eram carinhosas para os seus filhos. Nós somos pessoas tribais. Somos carinhosos para aqueles que estão perto de nós. Mas não necessariamente para os que não nos são próximos. 





O que acha da aproximação de Hollywood à crise financeira? Acha que existe aqui algum paradoxo?





Porque haveria de existir um paradoxo?











Porque Hollywood faz parte do sistema económico.





Mas você também faz parte do sistema. Todos nós fazemos parte do sistema.





Imagino a pressão de um grande estúdio quando se trata de abordar um tema destes... Acha que ainda existe liberdade de expressão em Hollywood?





Acha que existe liberdade de expressão onde vive?





Nem por isso...





Veja bem, Hollywood não é diferente do mundo. As pessoas são as mesmas.





Mas é o dinheiro que manda, não?





O dinheiro manda em tudo. Mas isso é apenas parte da história. Mesmo quem tem muito dinheiro terá alguém na sua vida por quem se interesse. Por ser negativo o que se faz com o dinheiro, mas não quer dizer que o dinheiro seja algo nocivo. O problema é o que se faz com ele, como se consegue e o que faz com ele. Será que é possível adquirir dinheiro sem explorar as pessoas?





Não me parece.





Provavelmente sim. Provavelmente, será essa a maneira correta de o obter. Mas também para o distribuir pelos outros. Acumular dinheiro é uma das coisas mais tresloucadas deste planeta.





Como o Richard diz que nada é branco ou preto, pergunto que fraquezas vê em si próprio?





Claro que tenho fraquezas. Gosto de viajar, comer bem, ser bem tratado. Gosto mais de ver pessoas simpáticas quando ando na rua do que ver pessoas a gritar. Claro que somos todos iguais. Não há grandes diferenças. A minha grande diferença é que sou mais velho que você... (risos). De resto acho que temos quase tudo em comum. Especialmente a emoção. São as mesmas coisas que nos fazem sentir bem. E nunca é o dinheiro. Perguntem a alguém que tem muito dinheiro se é mais um milhão de dólares que o vai sentir mais feliz. É mais o calor do sol quando chega a casa e encontra a sua família.





O que acha que o separa das personagens que interpreta?
É o conhecimento que tenho das coisas. É essa a única diferença. A maquilhagem física ou emocional não serve.

Já agora, como o Richard é um homem interessado pela política do seu país, queria perguntar-lhe o que acha que vai acontecer nas eleições de Novembro?
De momento, parece que as coisas estão a correr bastante bem. Obama deverá ser reeleito e espero que parte do seu processo de reeleição o encoraje a ser o Presidente que queremos que tivesse sido à quatro anos atrás.

Ficou decepcionado com ele?
Claro. Mas não o suficiente para votar no outro lado. Para mim, continua a ser uma decisão muito clara. Mas a verdade é que poderia ter feito mais. Agora, teve uma oposição tremenda. Disso não há dúvida. É que quase 50% da população, o que corresponde ao outro partido, recusou-se a mostrar-se flexível no que quer que fosse. E foram unânimes nessa recusa. Em tudo. Disseram “Não!”. Mas ele é o Presidente dos Estados Unidos, por isso tem de fazer alguma coisa, encontrar uma forma de fazer o que tem de ser feito.

Nesse sentido, este filme poderá até ser uma mensagem para ele ou muitos políticos. Acredita que filmes como este podem enviar mensagens políticas?
Há sempre uma parte de mensagem que segue. Não era o Godard que dizia que o ato de mover a câmara já era uma decisão (risos)?...



O que noto também no que estava a dizer é que esta crise em que vivemos torna as pessoas muitos mais iguais umas às outras. Por exemplo, ainda recente tivemos uma manifestação grande em Portugal, tal como sucedeu em outros países. Acha que é salutar este ato de revolta, de dizer que basta?

Como forma de expressão? Absolutamente. Mas não de forma violenta. A violência nunca resolve nada. Nunca. Apenas torna louca a pessoa que despoleta a violência, para além de desencadear outro mecanismo de violência. A pessoa sobre quem é direcionada essa violência fica também transtornada e desencadeia sobre ela um novo mecanismo de violência. Portanto, com a violência não chegamos a lado nenhum. Agora, a expressão os nossos sentimentos, o nosso desagrado, claro que sim. Isso é a coisa mais importante que temos: expressar-nos. E isso acontece agora mesmo na China, o país mais repressivo do mundo. O orçamento deles em vigilância supera o orçamento militar. Observam tudo, com câmaras em todo o lado. Pessoas que observam, anotam tudo, escutam ao telefone, pela internet. O budget de vigilância é superior ao militar. Porquê? Porque têm medo que as pessoas se expressem. Isso não tem nada a ver com capitalismo, nem com democracia. Por isso, eu digo que a liberdade de expressão é o bem mais valioso para nós e para a nossa sociedade enquanto seres humanos.

Mesmo quando percebemos quando as pessoas estão cansadas de palavras e de protestos pacíficos...

Encontrar a paz e recusar a violência pode levar muito tempo. Isso não é algo que aconteça da noite para o dia. Pela violência consegue-se algo muito rápido, mas quando se consegue o objectivo, mas traz consigo mais problemas. A não violência e as manifestações pacíficas levam mais tempo. Mas quando se alcança esse objectivo, o resultado fica alcançado. 

Falemos um pouco do presente. Do seu presente. Onde é que o Richard concentra a sua energia. Na família, no lado mais espiritual? De que forma isso altera a forma como encara os seus projetos?

É claro que a minha relação com a minha família vem primeiro, bem como a relação com os meus mestres. Digamos que fica no mesmo nível. Regressei recentemente de Katmandu, no Nepal. Um dos meus mestres falecera, o que motivou uma reunião das tribos no Nepal. Isso foi uma grande experiência e ele teve uma grande influência sobre mim e motivou levou a minha meditação a outros lugares. Estive depois na Índia numa reunião onde recolhi ensinamentos com tibetanos e também coreanos. Depois regressei. Mas a minha vida está separada por várias paragens. Por isso, para elencar as minhas prioridades, diria que é a minha família, em primeiro, os meus mestres depois e a minha experiência no Tibete. Isto sem esquecer a minha carreira, é claro: é muito divertido fazer filmes. Mas dá-me também essa liberdade de viajar para onde quero e obter todas estas experiências e de poder falar consigo agora e partilhar isto que acabo de lhe dizer.

Existe uma imagem de ‘sex symbol’ que o tem perseguido. E mesmo com a idade não parece abrandar. Como explica isso?

O que posso dizer? Eu nunca reconheci isso. É o tipo de questão que surge mais em entrevistas do que na minha vida. Percebe? Eu limito-me a fazer o meu trabalho. E, confesso, não é nada do outro mundo, acredite. Agora, eu gosto do que faço. E gostaria de encontrar outras pessoas nessa mesma dimensão. Trata-se de um trabalho que entretém as pessoas, que as motiva. Já os rótulos que se colocam não têm para mim muito significado.

Apesar da crise económica em que vivemos, sente-se que o Richard tem sempre um grande otimismo. Como é que consegue?
Vou dizer-lhe uma coisa porque já tenho mais de 60 anos. A realidade é o centro do que nós somos. Não é difícil, dura e complexa. O nosso centro é feito de amor, compaixão e generosidade. Eu sinto isso de uma forma muito íntima no meu mundo. É isso mesmo que é o universo. Ainda que tudo o que está à superfície possa causar demasiada dor, conflito e violência. Agora isso pode ser removido, não faz parte do que somos realmente. Então o que devemos fazer é tentar compreender-nos a nós próprios e remover essas causas. Ao revelar-nos veremos que estamos todos intimamente interligados. Não faz sentido vivermos numa espécie de pesadelo acordados. Necessitamos de acordar. Eu tenho visto isso acontecer inúmeras vezes.



Richard Gere e Susan Sarandon em San Sebastián

Que atores promissores admira hoje em dia?
Admiro, por exemplo, o Ryan Gosling. A minha mulher é doida por ele. E se isso acontece já acho que é um bom sinal (risos).

Qual é o seu grande sonho ainda por realizar?
Para lhe dizer a verdade, os meus sonhos são todos sobre o meu filho. Eu e a minha mulher (Carey Lowell, casados desde 2002) atravessamos um momento muito bom e o nosso filho (Homer James) tem doze anos. Neste momento, ele representa a magia da minha vida.

Temos estado a falar de espiritualidade e sabemos que o Richard é crente na religião budista. Mas, diga-me, quando foi que sentiu que esse era o seu caminho? Foi uma aproximação intelectual ou decorreu de algum evento da sua vida?
É uma questão vasta. No fundo estamos a falar de sistemas. O meu objectivo é conseguir a liberdade. É poder exprimir uma libertação, compaixão e sabedoria. Para mim, o budismo é o caminho que escolhi. E descobri-o muito cedo, teria eu vinte e poucos anos. Mas é perigoso pensar numa religião ou um qualquer sistema de pensamento como uma forma de resolver. O nosso caminho é o da liberdade e existe muitas vias para lá chegar. Este satisfaz-me muito bem. E tive a oportunidade de ter grandes professores.

Lembra-se, para terminar, quando e por que razão foi que decidiu ser atctor?
Num determinado momento devo ter decido, mas não me lembro exatamente quando. É claro que quando já participava em peças de teatro acho que sabia como a minha vida iria ser. Lembro-me que gostava do processo de me tornar numa personagem que interpretava diante de um público. Mas eu era extremamente tímido na altura, o que me dificultava criar relações. Lembro-me quando obtive o meu primeiro trabalho como ator, no meu último ano de universidade. E lembro-me de receber um telefonema do teatro dizendo que contavam comigo. Nessa altura senti uma energia enorme a percorrer-me o corpo. Então pensei: “é isto que vai ser a minha vida!” Foi uma sensação incrível. Houve alguns momentos na minha carreira em que senti essa energia de estar a fazer algo que apreciava.

 
FREE TIBET WORLD © 1990|2016 Todos os direitos reservados CAS.